'Jogos Vorazes : A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes' : filme brinca com saudosismo e flerta com liberdades conflitantes | 2023
NOTA 7.0
Snow sempre cai como neve
Por Vinícius Martins @cinemarcante
A saga de Katniss Everdeen, chegada aos cinemas em 2012 com o lançamento do filme 'Jogos Vorazes', trouxe às telas o universo do livro homônimo e encantou os amantes de ficções distópicas com uma facilidade enorme graças à estética adotada e a fidelidade ao material original. Uma legião de fãs surgiu com o lançamento das sequências, e a excelência dessas adaptações ganhou destaque no hall dos leitores jovens-adultos e se tornou uma referência no que diz respeito a como transpor a história de um livro para o cinema. O grande êxito da franquia foi agregar informações de fora da narrativa do livro, que é relatado em primeira pessoa do presente, para apresentar os bastidores políticos que ocorriam na Capital paralelamente à jornada de Katniss. Logo, os méritos de acrescentar à mitologia foram reconhecidos e exaltados, tendo em vista que o costumeiro é justamente o oposto; cortar cenas e fazer mudanças desnecessárias para facilitar a dinâmica da transição das mídias.
Ocorre que o novo filme, um spin-off prelúdio focado no presidente Snow, esquece a fórmula de sucesso que consolidou seus predecessores e abdica de muitos traços que tornaram os filmes anteriores adaptações tão memoráveis. Aqui existem as tais mudanças desnecessárias e cenas cortadas, além da total inexistência de personagens que, embora não fossem fundamentais, mantinham uma cadência orgânica às revelações da trama - como se as pistas para o público estivessem espalhadas com os figurantes para serem entregues pontualmente ao protagonista em momentos chave, que o levariam a indagações que movimentariam suas motivações (como, por exemplo, a revelação de uma amizade do pai de Coriolanus). A cena da apresentação dos tributos aos seus mentores e à Capital chega a ser ignorante tamanha é a conveniência, contrariando até o próprio conceito do sorteio dos jogos.
No entanto, é importante destacar que o livro 'A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes' é diferente dos demais em vários pontos, mas em especial no método da narrativa (que aqui é em terceira pessoa do pretérito) e no tamanho da história, que quase dobra em comparação aos outros livros. Isso lima a necessidade de qualquer acréscimo à trama, mas ao mesmo tempo causa uma nítida saturação de conteúdo para pouco tempo de tela. Arrisco dizer com tranquilidade que a história tinha fôlego para sustentar a mesma duração de ‘Assassinos da Lua das Flores’ sem causar fadiga no público. O diretor Francis Lawrence, que declarou arrependimento em ter compactuado na divisão do último livro em dois filmes, decidiu manter todo o material disponível nas quase seiscentas páginas em um único longa-metragem, o que gerou 2h40 de um filme repleto de material - o que, em tese, é uma coisa muito boa, mas essa escolha resultou em trechos elipsados e/ou acelerados demais, e isso deu (a mim, pelo menos) uma impressão plastificada no desenvolvimento das relações, principalmente na que Coriolanus e sua tributo Lucy Gray desenvolvem.
O entroncamento da via distópica, que adota uma atmosfera retrofuturista, aqui surge com ainda mais charme e elegância ao evocar uma estética cinquentista, com uma Panem se reconstruindo na primeira década pós-guerra e reafirmando perante os distritos sua magnitude e imponência. O design de produção é facilmente o ponto mais alto do filme, mas isso não gera demérito às outras partes. O elenco aqui é uma constelação e tanto, principalmente com a trindade Rachel Zegler, Viola Davis e Peter Dinklage, que incorporam doçura, deboche e/ou rispidez exatamente conforme a trama demanda. Dinâmicas diferentes de poder, abordagens diferentes de ambição, métodos diferentes de estratégia. E aí chegamos ao protagonista, Coriolanus Snow, que no livro é simultaneamente herói e vilão na própria história. Snow é um personagem ambíguo em um mundo maniqueísta, onde a divisão nós-eles é o cerne social proveniente a um regime totalitário que mantém a memória da guerra inflada, e o personagem faz valer “a ansiedade de ter e o tédio de possuir”, transmitido com muita verdade na atuação de Tom Blyth.
O universo de ‘Jogos Vorazes’ continua atraente e proporcionando excelentes debates sobre status e poder, mas o novo filme ficou um pouco aquém dos demais justamente por não ser levado ao pé da letra conforme foi escrito. Muito do caráter de dúvida e dos dilemas de Coriolanus se perdeu, e alguns atalhos na estrutura quase comprometeram tudo que a autora construiu. A produção alterna o ritmo conforme passam as três partes da história, mas justamente pela pressa em alguns desenvolvimentos e a calma desacelerar e enfiar meia dúzia de cantorias, fica a impressão de que o filme superestima uma repetição descartável e ignora um necessária cadência orgânica de eventos. Não decide se é pássaro ou serpente, se voa ou se rasteja. Uma coisa é a história ser sobre pássaros e serpentes literais e metafóricos, outra bem diferente é se estruturar como os dois animais e querer que essa coexistência funcione sem que uma sufoque a outra. Contudo, apesar da observação negativa, é um bom filme. Muita música (muita mesmo), e muitas mortes devem fazer o filme ser um acréscimo interessante à mitologia de Katniss para quem não deu o livro, mas para quem leu… bem, aí a conversa já é outra.
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