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'O Pequeno Corpo': com toques de realismo mágico, longa aborda fé e maternidade em território hostil às mulheres | 2023

NOTA 7.0

Por Alan Ferreira @depoisdaquelefilme


A maternidade sempre rendeu ao cinema obras carregadas de emoção. Recentemente, por exemplo, a Netflix disponibilizou em seu catálogo dois títulos que chamaram a atenção por, de maneiras distintas, trabalharem a temática: “Pieces of a Woman” e “A Filha Perdida”. Ambos apresentavam um olhar contemporâneo sobre o surgimento - e o doloroso rompimento - do chamado instinto materno. Já em “O Pequeno Corpo”, que assim como o primeiro também foca nas ações de uma jovem mãe após a perda da criança durante o parto, veremos um cenário quase primitivo na abordagem do que há de primordial no sentir-se mãe e da perpétua hostilidade de um mundo que não facilita em nada para mulheres.

Exibido na Semana da Crítica no Festival de Cannes em 2021, a produção italiana conta a história de Agata, uma jovem que vive numa região litorânea isolada no ano de 1900 e que, à revelia do marido e da religião que rege sua comunidade, parte com a filha natimorta rumo a um santuário onde, segundo a crença, bebês dariam mais um “último suspiro”. Assim, eles poderiam ser rapidamente batizados para que suas almas não permaneçam vagando pelo Limbo. A partir disso, acompanhamos a protagonista numa jornada obstinada por diferentes lugares nos quais ela se vai deparar com figuras que jamais se aproximam apenas por solidariedade ou compaixão. Fora da vila de pescadores onde vive, cada pessoa com a qual Agata se relaciona é motivada por algum interesse, como Lynx, rapaz que se “oferece” para ajudá-la em troca do conteúdo da caixa que a moça carrega nas costas e protege com afinco leonino.

Em certos momentos, o roteiro, escrito pela própria diretora em parceria com Marco Borromei e Elisa Dondi, parece que vai enveredar pelo mesmo caminho de projetos como “O Pássaro Pintado”, em que um ser frágil (naquele caso, uma criança) é reiteradamente maltratado de forma inclemente por duas horas diante de nossos olhos. Contudo, felizmente, o longa passa a focar bem mais na relação entre Agata e Lynx – personagem misterioso, cuja caracterização traz à memória algumas ilustrações de “O Pequeno Príncipe” – e na sedimentação da dúvida no espectador acerca da superação dos obstáculos impostos e do sucesso daquela comovente busca por salvação espiritual.     

Tendo em suas mãos um elenco formado majoritariamente por atores não profissionais, Laura Samani ainda teve o cuidado de fazer com que os dialetos Veneto e Friuli, característicos da região onde filmou, fossem mantidos a fim de garantir uma maior identidade local à narrativa. Frente a esse contexto, Celeste Cescutti e Ondina Quadri mostram-se inteiramente entregues a seus papéis. A primeira, ainda novata, imprime a sua personagem um misto de determinação e desespero (afinal, o que é a fé?) que remete ao protagonista do avassalador “O Filho de Saul”, também tomado por uma ideia fixa relativa ao descanso em paz da alma do rebento. Já a segunda, uma atriz bem mais experiente, é perspicaz na composição de um ser andrógino e arredio, que surge como contraponto moral à nobreza do intento de Agata, mas que, aos poucos, vai deixando transparecer outras camadas (não todas) que tornam à certa altura a sua conduta imprevisível.

Vencedor do David di Donatelo, prestigiado prêmio do cinema italiano destinado a cineastas estreantes, “O Pequeno Corpo” é um filme seco, embora permeado de misticismo, que pinta com cores quase mortas uma realidade em que o sofrimento feminino é naturalizado – vide, por exemplo, a cena em que Agata é raptada para virar ama de leite. E se, até hoje, ainda precisamos de temas de redação que promovam debates acerca do quão massacrante é a vida de milhões de mulheres, mães ou não, dotadas de extrema fé ou completamente descrentes, é porque o milagre de uma sociedade mais atenta aos seus anseios e necessidades ainda não aconteceu. 






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